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Não há como negar que a bicicleta é uma das invenções mais versáteis já criadas pelo ser humano. Afinal, com apenas algumas variações, ela pode servir para encarar descidas em trilhas alucinantes, ou chegar ao topo das estradas mais desafiadoras do planeta. De quebra, ela ainda serve como meio de transporte e também como fonte de lazer para muitas pessoas.
Além de todas essas funções, a bike pode ser uma maneira diferente de explorar não apenas o mundo, mas também as pessoas que encontramos ao longo do caminho. Essa foi a percepção que tivemos após conversar com Lucca Cardoso, de 25 anos, e Lincoln Paiva – dois cicloturistas experientes que, ao longo dos anos, acumularam milhares de quilômetros pedalando por diversas estradas e trilhas ao redor do mundo.
Lincoln, que tem 40 anos, começou a pedalar ainda jovem e, depois de usar a bike como meio de transporte em uma greve de ônibus, descobriu que a magrela podia levar ele muito mais longe:
“Descobri que a bike me levava mais longe em 2003, durante uma greve de ônibus em São Paulo, enquanto prestava serviço militar. Morava em uma determinada região da cidade e servia no Ibirapuera. Como já pedalava, decidi usar a bicicleta para me deslocar. Percebi que ela me levava cada vez mais longe, e que conseguia chegar no horário e evitar qualquer punição, mesmo com a greve. Isso ampliou minha visão sobre a bike, as distâncias e as pessoas que já faziam longas viagens de bicicleta”, afirmou Lincoln que, dai para frente, foi se apaixonando cada vez mais pelas pedaladas.
Depois dessa experiência, o ciclista decidiu descer no pedal até Santos, percorrendo o trajeto que hoje é conhecido como a Rota Márcia Prado, em uma viagem feita com outras pessoas. Já apaixonado pela atividade, ele resolveu encarar um novo desafio, pedalando de São Paulo até Aparecida, dessa vez sozinho.
Já Lucca, natural de Araxá, Minas Gerais, uma das capitais do mountain biking no Brasil, começou a pedalar por esporte. No entanto, após receber um convite de um amigo, na época em que ele morava em uma república de estudantes, embarcou em uma viagem de 800 km pela costa do Uruguai. As diferentes experiências de ambos mostram que, quando o assunto é cicloviagem, não existe uma maneira única ou certa de começar.
O ser humano é um bicho curioso e, ao viajar de bicicleta, isso fica bastante claro. Nas viagens, seja no Brasil, na Europa, na América do Sul ou em qualquer outro lugar do mundo, a magrela acaba abrindo portas que você nem imaginava que existiam. De bike, a receptividade costuma ser muito grande, seja pela surpresa e curiosidade de ver alguém viajando de bicicleta, algo que acontece muito na América do Sul, ou simplesmente pelo desejo de ajudar o próximo, em lugares onde a figura do cicloviajante, como na Europa e nos Estados Unidos, já faz parte da paisagem.
“Quando você está em uma cicloviagem, é comum encontrar muitas pessoas. Pessoas que, muitas vezes, te enxergam como um andarilho sem rumo. Elas param para conversar, demonstrando uma grande admiração por você estar fazendo algo que, às vezes, elas mesmas gostariam de fazer, mas não têm coragem, tempo ou, talvez, por conta de responsabilidades familiares, como ter filhos e cuidar da família. Eu também tenho, mas na minha casa isso está muito bem acertado, então consigo me dedicar a essas viagens. A maioria das pessoas com quem faço amizade, percebo que nutre uma certa admiração por essa escolha de vida”, afirmou Lincoln, revelando uma percepção semelhante a de Lucca.
“O que realmente motiva a viagem são as pessoas e a bondade delas. Chegar num vilarejo, no meio do nada, após horas de pedal, e ser recebido com curiosidade, alguém perguntando o que você está fazendo ali, querendo saber sua história. Ser convidado para um churrasco, um almoço, uma janta, ou até para dormir na garagem de alguém – a generosidade das pessoas realmente transforma os meus dias. Sabemos que a viagem traz dificuldades, e quando alguém se apresenta de forma genuína, só querendo o seu bem, isso dá esperança na humanidade. Além disso, é uma oportunidade única de conhecer as culturas como elas realmente são. Estar na casa de uma família, no meio do nada, desfrutando de uma refeição, faz com que você vivencie os problemas da sociedade e a cultura de uma maneira profunda e incrível. É algo inigualável”, revelou Lucca, relembrando uma velha história.
“Uma vez, cheguei em um pequeno vilarejo no interior do Peru, após horas pedalando e sem comida. Conversando com crianças que brincavam na praça, pedi informação e elas prontamente me levaram até o mercadinho. Após comprar meu macarrão, conversei com a dona sobre onde poderia dormir. Enquanto esperava na praça pelo marido dela, que talvez me arrumasse um lugar para dormir na prefeitura, as crianças me convidaram para ir à casa delas”, contou o jovem ciclista.
“Fui muito bem recebido pela família, que serviu uma sopa caseira. As crianças, animadas, contaram aos pais sobre o “brasileiro na praça” que precisava de abrigo. Acabei dormindo na casa, que era simples, com chão batido e apenas dois cômodos. Mesmo com o frio intenso da noite, que chegava a menos 5 graus, a família se preocupou em me oferecer jantar e café da manhã no dia seguinte. Essa experiência destaca como as pessoas estão dispostas a ajudar, mesmo sem me conhecer”, complementou.
Como você reparou, a receptividade humana é um dos pontos altos de qualquer cicloviagem, especialmente porque, em alguns casos, contar com o próximo é a única maneira de sair de algumas situações. Porém, assim como destacou Lincoln, o planejamento é fundamental para reduzir ao máximo os “perrengues” do caminho. Inclusive, segundo ele, planejar faz parte da mágica de viajar:
“Eu diria que a cicloviagem começa quando você começa a planejar. Particularmente, começo a vivenciar o que vai acontecer já neste momento. Gosto muito de usar o Google Maps para explorar, ver onde vou chegar, onde vou montar minha barraca ou se vou precisar de hospedagem. Não gosto de me ver sem nenhum recurso na cicloviagem, ao relento, então sempre procuro esse tipo de suporte”, explicou.
“No planejamento, já começo a vibrar boas energias, imaginando: ‘aqui vou passar, é aqui que vou viver um momento especial’. Lembro que, em 2019, quando conversei com a Renata Falzoni, que estava prestes a fazer uma cicloviagem. Ela me deu uma dica valiosa: ‘Quando estiver subindo a cordilheira dos Andes, pare nas termas de Cacheuta, onde você pode tomar banho nas águas termais.’ Aquela dica foi tão boa que eu a incluí no meu planejamento. Quando estava subindo a cordilheira, exausto e enfrentando o frio, essas águas quentes me deram um gás a mais. Foi uma dica incrível, que fez toda a diferença. Por isso, para mim, o planejamento é tudo na cicloviagem, ele antecipa de forma positiva o que está por vir.”, complementou o cicloviajante.
Mais do que conhecer novos lugares, fazer uma cicloviagem longa, e às vezes solitária, é uma maneira incrível de descobrir suas forças e fraquezas, além de tudo que te torna humano. Pedalar ensina que, em certos momentos, a única opção é seguir em frente, independentemente do obstáculo – afinal, não dá para ficar parado no meio do nada, esperando por um milagre.
Mas, seja para Lincoln ou para Lucca, há várias formas de encarar longas horas na bike, e essa é uma das maiores descobertas de um cicloviajante.
“O segredo para uma pedalada mais longa e solitária é, primeiro, estar preparado psicologicamente, inclusive para as adversidades. Em alguns dias, você pode sair pedalando sob calor, enfrentar uma chuva na hora do almoço e, ao fim do dia, encarar aquele mormaço. Isso afeta bastante o corpo, e, consequentemente, o psicológico”, explicou Paiva.
“Por isso, estou sempre com uma caixinha de música e procuro estar bem alinhado comigo mesmo, centrado nas minhas ideias. Às vezes, reflito sobre a vida, o ano que passou ou sobre as coisas boas que virão após a cicloviagem. E, claro, estou sempre aberto a conhecer novas pessoas na estrada, porque as pessoas te param, fazem perguntas, e aí você deixa de estar solitário”, complementou.
Para Lucca, e provando que existem várias maneiras de se atingir o mesmo objetivo, os momentos sozinho sobre a bike funcionam quase que como uma meditação, ou um momento para refletir sobre as coisas, e também apreciar a beleza do mundo:
“Tem dias em que passo até 11 horas em cima da bike. Nesse tempo, penso em tudo: já imaginei o que faria com o prêmio da loteria, em soluções para a crise climática, e também em coisas do dia a dia. Lembro de aventuras passadas e faço planos para os próximos dias. Mas o que realmente me motiva são as paisagens que mudam a cada instante. Depois de horas subindo por aquelas curvas intermináveis, você faz uma curva e tudo se transforma — a paisagem muda, as cores das montanhas mudam. É essa constante descoberta de novos lugares que me mantém firme, me faz continuar pedalando até alcançar o meu objetivo”, afirmou.
Não há como negar que, no ciclotour, nem tudo é um mar de rosas: afinal, cansaço, problemas mecânicos, dores e conflitos pessoais existem e fazem parte da jornada. O segredo, assim como na vida, é aprender a lidar com isso, e transformar as experiências dificeis em aprendizado.
“Como seres humanos, todos passamos por dificuldades. Procuro sempre tirar aprendizado dessas situações, embora tenha tido poucas experiências negativas. As positivas superam as negativas de longe. Uma experiência negativa que me marcou bastante aconteceu em 2018, e me fez repensar algumas coisas para uma cicloviagem em 2019, que acabou sendo um sucesso, onde tudo correu muito bem”, afirmou Lincoln.
“Por isso, acredite nos seus sonhos e na bike. Entenda que a bicicleta te leva por novos caminhos e perspectivas, mostrando que o mundo não é feito só de coisas e pessoas ruins. Há muita gente boa por aí, e na cicloviagem você consegue ver isso de verdade. A bike transforma, e a cicloviagem abre a mente, abre caminhos e te conecta com experiências incríveis ao redor do mundo”, finalizou Paiva.
“Quando encontro outro ciclista na estrada, trocamos informações valiosas sobre onde dormir, comer e a condição das rotas. Na América do Sul, temos um grupo no WhatsApp com mais de 900 ciclistas dispostos a responder perguntas e apoiar uns aos outros. Além disso, há hospedagens gratuitas para cicloviajantes. Quando planejei minha viagem, recebi muita ajuda de outros ciclistas, e hoje faço questão de retribuir, respondendo perguntas nas redes sociais. Queremos incentivar cada vez mais pessoas a viajarem de bicicleta”, explicou Lucca.
“Não há idade para fazer cicloturismo, nem uma maneira certa de realizá-lo. Você pode pedalar 5 km, 10 km ou até 200 km por dia; o importante é seguir seu próprio ritmo. Já conheci pessoas de todas as idades, desde crianças viajando com os pais até aposentados com mais de 70 anos pedalando. Não há desculpas para não começar. Você pode usar qualquer bicicleta, seja uma de 100 mil reais ou uma de 500 reais. O que realmente importa é sair e se movimentar”, complementou.
Depois desta jornada, concluímos que cicloviajar é uma forma de explorar novos lugares, mas também de conhecer a si mesmo, e de se conectar com o próximo. As experiencias de Lincoln e Lucca, e também a de outros cicloviajantes, mostram que a bike traz lições sobre a humanidade, resiliência e generosidade. Pelo caminho, encontramos grandes desafios, mas que não são maiores do que a bondade humana.
Assim, a cicloviagem se transforma em um verdadeiro emblema da união entre o ser humano e o mundo ao seu redor.
Por isso, nos vemos nos pedais! 🙂